sexta-feira, 30 de março de 2012
Yo no creo en los bisexuales... pero que los hay, los hay!
“Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? Este mundo é muito misturado”. Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas
Apesar das lutas que se tem travado por uma sexualidade mais
livre, isenta de preconceitos, a bissexualidade ainda é um assunto controverso,
mesmo entre os homossexuais. Não é incomum ouvir que bissexuais não
existem. Muitas vezes, heterossexuais e homossexuais fazem coro dizendo que o
bissexual não passa de um gay enrustido, que só colocou o pezinho para fora do
armário; outros, em tom mais complacente, dirão que o pobre está apenas
confuso, e que tudo não passaria de uma fase. É surpreendente o quanto esse
tipo de discurso encontra ressonância entre os homossexuais (informe-se aqui).
Isto aconteceria porque os homossexuais, embora estejam
lutando para redefinir valores morais, ainda se guiam por um
sistema de pensamento hétero-normativo. Para tal sistema, o normal é que homens
gostem de mulheres, e vice-versa, qualquer um que manifeste desejo por alguém
do mesmo sexo está radicalmente excluído da norma, portanto é necessariamente homossexual. Ou hétero, ou gay; preto no branco. Aceitar que um homossexual possa
desejar também uma pessoa do sexo oposto coloca em xeque a própria identidade
heterossexual. O que impediria, nesse caso, que um heterossexual também
sentisse desejo por uma pessoa do mesmo sexo? A hétero-normatividade necessita
de identidades sexuais estáveis e estanques, não intercambiáveis. A bissexualidade embaralha as peças no tabuleiro, violando as regras do jogo. Se um
gay não é sempre um gay, quais garantias um hétero terá de sempre ser hétero? Diante
da bissexualidade, muitas certezas socialmente construídas se desfazem e o
indivíduo só pode contar com a consciência em relação ao próprio desejo, que, ao contrário
das identidades sexuais, é fluido. O exclusivismo sexual do gay está aí para
garantir ao hétero a segurança sobre sua própria sexualidade.
Durante seu período de formação como indivíduos, tanto heterossexuais
quanto homossexuais internalizam os valores vigentes, o que resulta
numa forma de enxergar a questão sexual em preto e branco, ignorando-se as
nuances. A educação que recebemos durante
nosso processo de constituição como sujeitos não é apenas uma série de conceitos
que pretendem explicar a realidade em suas variadas facetas. Tais conceitos configuram um padrão de apreensão do real, determinando como
as coisas serão vistas e quais significados podemos atribuir a elas. Dessa maneira,
uma educação hétero-normativa pode alienar o sujeito de alguns aspectos de seu
desejo, na medida em que institui a forma como os dados da experiência psicológica
do indivíduo serão apreendidos e interpretados. Se o sujeito não intui a bissexualidade como uma possibilidade de organização de seu desejo, pode ser que ele
denegue ou recalque seus impulsos homo ou heterossexuais, conforme o caso. Não é
que tais impulsos não estejam ali; eles apenas não chegam a se constituir como
objeto discernível para a consciência do indivíduo. Passam a viver nas sombras,
manifestando-se subliminarmente.
Embora acredite que, potencialmente, todo ser humano é
bissexual, também acredito que há, sim, pessoas que se sentem atraídas
majoritária e preferencialmente por pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, manifestando
uma tendência natural para a homossexualidade ou para a heterossexualidade. Contudo,
há também aqueles que distribuem seu desejo de maneira mais equalizada, de tal modo que tais tendências naturais possuem uma força menor em
sua estruturação psicológica. Daí teremos um caso “clássico” de bissexualidade,
o que não quer dizer que, mesmo neste caso, não exista uma preferência ainda
que tênue por um dos dois sexos. Da mesma maneira, pode-se dizer que mesmo um
gay muito bem resolvido nutra algum nível de desejo por pessoas do sexo oposto,
um desejo do qual o sujeito talvez estaja alienado, devido ao modo como sua personalidade foi formada (o mesmo pode ser dito de um heterossexual
igualmente bem resolvido).
Imagino que seja difícil para um homossexual, após um penoso processo de auto-aceitação, cogitar a possibilidade de alimentar
algum desejo heterossexual; certamente, parecer-lhe-á um retrocesso diante de
uma difícil conquista, mesmo que tal desejo não seja forte o suficiente a ponto
de se querer colocá-lo em prática. No entanto, o homossexual que se fecha intransigentemente
num exclusivismo sexual, não aceitando a bissexualidade sequer como hipótese
explicativa de certos componentes da experiência humana, está jogando com as
regras do inimigo (a visão de mundo hétero-normativa), que pretende que héteros
e gays estejam apartados por um abismo intransponível chamado desejo. Mas o que se teme na verdade é que o desejo possa ser uma ponte entre ambos.
A bissexualidade é quem indicia a proximidade como um possível, e negar sua
existência é uma tentativa de manter as coisas em seu devido lugar.
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