"(...) o erotismo exige uma obscenidade levemente sublimada, se é que ouso me exprimir assim... uma obscenidade poética... e a dosagem dessa obscenidade é coisa extremamente delicada de se observar (...)" Boris Vian, Escritos pornográficos
O problema abordado neste artigo me foi sugerido por um post
do blog parceiro Sociedade Dionisíaca. Você pode lê-lo aqui.
Antes de tentar diferir pornografia
e arte erótica, é preciso refletir sobre a diferença entre sexualidade e o
erotismo em geral. A sexualidade, a
priori, está ligada à atividade reprodutiva humana; o prazer sexual é um meio
pelo qual a natureza induz os animais, inconscientes da necessidade prática de
dar continuidade à espécie, a se reproduzir. Os animais fazem sexo não por
ter como objetivo garantir a existência das futuras gerações, mas porque lhes causa prazer. O orgasmo é uma espécie de incentivo
evolutivo, em alguns casos irresistível, à reprodução. Acontece que, uma vez
que os animais estão aparelhados para o prazer sexual, podem acabar descobrindo
instintivamente outras formas de obtê-lo que não passem pela prática
reprodutiva. A fricção dos órgãos sexuais, por exemplo, que em espécies
intelectualmente mais sofisticadas e com certa ajuda da anatomia pode acabar resultando
na masturbação. Outras formas de obter prazer sexual driblando a reprodução é
por meio do sexo oral ou do anal, e por aí vai. Em suma, a sexualidade é uma
dimensão da experiência humana que compartilhamos com os animais e que é responsável
pela obtenção do prazer sexual.
Já o erotismo diz respeito a uma
série de estratégias culturalmente construídas com o objetivo de intensificar e
estender o prazer sexual. O jogo erótico começa antes mesmo do sexo. Pode-se
instigar o desejo por meio do desnudamento total ou parcial, acenando ao parceiro
com a promessa do gozo; durante a relação, o prazer sexual pode ser prolongado retardando-se
o orgasmo de várias maneiras. Ou seja, o erotismo incrementa o desejo e
potencializa o prazer. As fantasias, por exemplo, compõem a dimensão erótica,
portanto lúdica, do sexo. Enquanto na sexualidade o prazer é um meio para a
reprodução da espécie, no erotismo, o que conta é o prazer pelo prazer, o
prazer basta-se a si mesmo. Tecendo uma analogia com a linguagem, a sexualidade
é como a linguagem cotidiana, utilitária, que utilizamos para nos comunicar,
como meio de veiculação de ideias; já o erotismo é como a poesia, um jogo sofisticado
com as palavras cujo objetivo mais imediato é alcançar algum nível de prazer
estético, sem nenhuma finalidade prática aparente — o erotismo está para o sexo assim como a poesia está para a linguagem. O objetivo, a meta, da
sexualidade é a satisfação sexual, enquanto o erotismo se foca no prazer sexual,
nos meios pelos quais se atinge a dita satisfação. Parafraseando Kant em
relação à estética, no erotismo, o prazer é um fim em si mesmo, sem qualquer finalidade
prática, nem mesmo a satisfação do desejo (a maior das fantasias não seria
viver num permanente estado de excitação erótica, gozando de um prazer que nem
mesmo o orgasmo seria capaz de interromper?). Sintetizando: a sexualidade é
animal, meramente fisiológica, natural, já o erotismo é coisa humana, participa
da esfera da cultura e comporta certo grau de artificialismo, de ritualização.
Dessa maneira, a pornografia pode
ser considerada como a representação da sexualidade humana, com fins de
possibilitar a satisfação sexual de seu receptor, que se satisfaz por meio de
um processo de empatia e projeção em relação à circunstância representada. Por isso
os vídeos pornográficos prescindem muitas vezes de enredos e podem começar in media
res, com a relação sexual já acontecendo. Por outro lado, o erotismo pode abrir mão inclusive da representação de uma relação sexual ou mesmo da nudez. Seu
objetivo é provocar o desejo, fomentar a imaginação. Uma obra como O beijo, de Gustav Klimt, é
profundamente erótica, apenas prometendo e insinuando:
O beijo (1907-8), Gustav Klimt |
Feita esta distinção inicial,
devemos nos perguntar: é possível separar radicalmente erotismo e pornografia? Não
haveria alguma dimensão erótica na pornografia? Se o objetivo da pornografia é
excitar o espectador e conduzi-lo ao orgasmo, certamente há erotismo aí. A simples
representação da função sexual, em si, não é pornográfica, a menos que vise
despertar o desejo do espectador, excitando-o. Como exemplo da representação
sexual não pornográfica, tomemos uma ilustração feita com finalidade técnica e
científica:
Podemos concluir então que a
pornografia participa necessariamente do erotismo, como um subgênero seu (o que torna impossível a tarefa de estabelecer limites rígidos e categóricos entre eles),
enquanto o erotismo pode prescindir da pornografia. Entretanto, menos erótica é
a pornografia quanto mais esta se reduz à simples representação das funções
sexuais humanas. No limite, as produções pornôs mais toscas se distanciam muito
pouco em sua realização de um documentário da Discovery Channel sobre o comportamento sexual de espécies animais,
razão pela qual podem não agradar nem excitar uma sensibilidade mais
sofisticada.
Creio que não haja muitas dúvidas
sobre a possibilidade de que o erotismo possa se tornar arte. Aliás, como
pretendi demonstrar, estética e erotismo obedecem a lógicas parecidas; como fenômenos
da percepção, são estruturalmente análogos. A grande questão é: até que ponto a
pornografia pode ser também uma forma de arte? Esta é uma questão que pretendo
responder num próximo post, mas, antes, gostaria de saber de vocês, meus
leitores, o que pensam sobre ela? Existe arte pornográfica? Conhece algum exemplo que
gostaria de compartilhar conosco?