quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Os limites entre erotismo e pornografia


"(...) o erotismo exige uma obscenidade levemente sublimada, se é que ouso me exprimir assim... uma obscenidade poética... e a dosagem dessa obscenidade é coisa extremamente delicada de se observar (...)" Boris Vian, Escritos pornográficos

O problema abordado neste artigo me foi sugerido por um post do blog parceiro Sociedade Dionisíaca. Você pode lê-lo aqui.

Antes de tentar diferir pornografia e arte erótica, é preciso refletir sobre a diferença entre sexualidade e o erotismo em geral. A sexualidade, a priori, está ligada à atividade reprodutiva humana; o prazer sexual é um meio pelo qual a natureza induz os animais, inconscientes da necessidade prática de dar continuidade à espécie, a se reproduzir. Os animais fazem sexo não por ter como objetivo garantir a existência das futuras gerações, mas porque lhes causa prazer. O orgasmo é uma espécie de incentivo evolutivo, em alguns casos irresistível, à reprodução. Acontece que, uma vez que os animais estão aparelhados para o prazer sexual, podem acabar descobrindo instintivamente outras formas de obtê-lo que não passem pela prática reprodutiva. A fricção dos órgãos sexuais, por exemplo, que em espécies intelectualmente mais sofisticadas e com certa ajuda da anatomia pode acabar resultando na masturbação. Outras formas de obter prazer sexual driblando a reprodução é por meio do sexo oral ou do anal, e por aí vai. Em suma, a sexualidade é uma dimensão da experiência humana que compartilhamos com os animais e que é responsável pela obtenção do prazer sexual.

Já o erotismo diz respeito a uma série de estratégias culturalmente construídas com o objetivo de intensificar e estender o prazer sexual. O jogo erótico começa antes mesmo do sexo. Pode-se instigar o desejo por meio do desnudamento total ou parcial, acenando ao parceiro com a promessa do gozo; durante a relação, o prazer sexual pode ser prolongado retardando-se o orgasmo de várias maneiras. Ou seja, o erotismo incrementa o desejo e potencializa o prazer. As fantasias, por exemplo, compõem a dimensão erótica, portanto lúdica, do sexo. Enquanto na sexualidade o prazer é um meio para a reprodução da espécie, no erotismo, o que conta é o prazer pelo prazer, o prazer basta-se a si mesmo. Tecendo uma analogia com a linguagem, a sexualidade é como a linguagem cotidiana, utilitária, que utilizamos para nos comunicar, como meio de veiculação de ideias; já o erotismo é como a poesia, um jogo sofisticado com as palavras cujo objetivo mais imediato é alcançar algum nível de prazer estético, sem nenhuma finalidade prática aparente — o erotismo está para o sexo assim como a poesia está para a linguagem. O objetivo, a meta, da sexualidade é a satisfação sexual, enquanto o erotismo se foca no prazer sexual, nos meios pelos quais se atinge a dita satisfação. Parafraseando Kant em relação à estética, no erotismo, o prazer é um fim em si mesmo, sem qualquer finalidade prática, nem mesmo a satisfação do desejo (a maior das fantasias não seria viver num permanente estado de excitação erótica, gozando de um prazer que nem mesmo o orgasmo seria capaz de interromper?). Sintetizando: a sexualidade é animal, meramente fisiológica, natural, já o erotismo é coisa humana, participa da esfera da cultura e comporta certo grau de artificialismo, de ritualização.

Dessa maneira, a pornografia pode ser considerada como a representação da sexualidade humana, com  fins de possibilitar a satisfação sexual de seu receptor, que se satisfaz por meio de um processo de empatia e projeção em relação à circunstância representada. Por isso os vídeos pornográficos prescindem muitas vezes de enredos e podem começar in media res, com a relação sexual já acontecendo. Por outro lado, o erotismo pode abrir mão inclusive da representação de uma relação sexual ou mesmo da nudez. Seu objetivo é provocar o desejo, fomentar a imaginação. Uma obra como O beijo, de Gustav Klimt, é profundamente erótica, apenas prometendo e insinuando:

O beijo (1907-8), Gustav Klimt

Feita esta distinção inicial, devemos nos perguntar: é possível separar radicalmente erotismo e pornografia? Não haveria alguma dimensão erótica na pornografia? Se o objetivo da pornografia é excitar o espectador e conduzi-lo ao orgasmo, certamente há erotismo aí. A simples representação da função sexual, em si, não é pornográfica, a menos que vise despertar o desejo do espectador, excitando-o. Como exemplo da representação sexual não pornográfica, tomemos uma ilustração feita com finalidade técnica e científica:


Podemos concluir então que a pornografia participa necessariamente do erotismo, como um subgênero seu (o que torna impossível a tarefa de estabelecer limites rígidos e categóricos entre eles), enquanto o erotismo pode prescindir da pornografia. Entretanto, menos erótica é a pornografia quanto mais esta se reduz à simples representação das funções sexuais humanas. No limite, as produções pornôs mais toscas se distanciam muito pouco em sua realização de um documentário da Discovery Channel sobre o comportamento sexual de espécies animais, razão pela qual podem não agradar nem excitar uma sensibilidade mais sofisticada.

Creio que não haja muitas dúvidas sobre a possibilidade de que o erotismo possa se tornar arte. Aliás, como pretendi demonstrar, estética e erotismo obedecem a lógicas parecidas; como fenômenos da percepção, são estruturalmente análogos. A grande questão é: até que ponto a pornografia pode ser também uma forma de arte? Esta é uma questão que pretendo responder num próximo post, mas, antes, gostaria de saber de vocês, meus leitores, o que pensam sobre ela? Existe arte pornográfica? Conhece algum exemplo que gostaria de compartilhar conosco?

O que eu quero? Sossego II


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